Crítica da Razão Técnica no Yoga

16 16America/Sao_Paulo julho 16America/Sao_Paulo 2022 0 comments Jayadvaita Categories Blog 2022Tags , ,

Ensaio 2

Por Jayadvaita Das

O Problema da Técnica

A prepotência moderna, apartada da transcendência, remonta há séculos – antes mesmo do advento viciante das redes sociais. Para tornar e manter didática esta exposição, traço uma breve reflexão a partir do ensaio crítico de Martin Heidegger sobre “a questão da técnica”.

Basicamente, neste ensaio, Heidegger demonstrará que a questão técnica foi rompida quando passou de orgânica à mecânica. Logicamente, Heidegger nunca estudou a visão metafísica do Yoga. Mesmo assim, tentarei demonstrar que, partindo do argumento de Heidegger sobre a questão da técnica, esta mesma alteração ocorre no pensamento prático do yoga, principalmente nos últimos seis séculos.

A etimologia da palavra técnica vem do técne, termo grego que designa arte, habilidade de criar o belo. Posteriormente envolveu também o conceito de poiesis, ou arte poética. Logo, técnica estaria ligada ao fazer como ato criador. O ato de criar está integrado à técnica. Mas, esta técnica nasce orgânica, inata ao ser humano, que vive e atua inserido (e consciente de sua inserção) na consciência do divino que em tudo habita. Naturalmente, a concepção grega de divindade é uma concepção empírica e difere da noção védica de divindade. Em outras palavras, podemos entender que a técnica era isenta do nebuloso ego artístico do poeta. Era dado ao homem a capacidade de criar enquanto inserido no ato, sem terceirizar ou necessitar de um intermediador, de um mecenas. Guarde bem este termo, ainda vivo e tonificado nos dias atuais: mecenas (hoje, o trêfego no mercado digital).

Paralelo à prática da técnica como atuação no processo de  compor, enquanto preservação da união homem e criador, teremos na tradição literária do yoga, a busca pela integral união homem e deus. Neste caso, em vez de compor, fazer da técnica, o homem passa apenas à contemplação estética do divino, dando a si mesmo o estatuto de deus. Ora, a ideia não altera as categorias originais e ontológicas do ser. Não é pelo fato de alguém pensar ser deus que se tornará deus.

Enquanto no ocidente o homem ruma à perfeição estética, que exigirá a eliminação de deus como objeto estético original, o que culminará na renascença, no oriente, mais especificamente na Índia, teremos a manifestação concludente de deus na arte, porém, em ambos os casos, a técnica perde sua essência de composição orgânica e se desenvolve como produção mecânica. Assim, o aspecto místico  do Yoga transita para esboço mecânico de uma autorrealização meramente de nome, ou externa, sem qualquer âmbito metafísico ou espiritual.

O artista passa a produzir arte como mercadoria, usando técnicas que exigem o objeto como algo externo a ele, o que não lhe é orgânico e natural. O homem passando ao centro humanístico torna seu mundo dividido pela realidade interior e exterior: o sujeito e o objeto; a mente e o corpo; a alma e a matéria. Diríamos, o que o mercado ditaria e o que o mecenas lhe pagaria. Para se sobrepor ao demiurgo original (proveniente da idealização platônica), a técnica passa a dar ao compositor artístico e poeta a habilidade de produzir arte e lírica tal qual o público exige e o mecenas impõe.

Neste mesmo momento, temos a efervescência corpórea do Hatha-yoga, que segue a cartilha do homem (ou do corpo) no centro do universo. Tal qual a renascença artística européia, tem-se na terra do conhecimento, a instauração da adoração ao corpo como forma e produto técnico do yoga. De certa forma, estamos falando do século quatorze, sendo portanto, ao menos no aspecto teórico e diacrônico, o Hatha-yoga o “precursor” da aura renascença no yoga, que viria a florescer em diversas regiões da Índia, ao mesmo tempo em que Florença produzia a grande arte para o mundo moderno.

Não há dúvida sobre as habilidades artísticas de Da Vinci, Michelangelo e Giotto, no entanto, habilidades estas delineadas pelo domínio técnico de produção sob encomenda, não mais sob o puro e direto ato de criador. O poeta e artista se torna um produtor. Ainda que numa configuração arcaica, temos aí o delinear da modernidade, onde a demanda por necessidades artificias se somarão à produção sob encomenda, ou seja, sob demanda dos renascentistas. Cabe ressaltar que estamos falando do início do capitalismo.

No yoga, por outro lado, o yogi se tornará um fazedor de yoga (não mais um praticante experimental), de onde veremos o apelo a outros produtos persuasivos, como sexualidade, poder místico, longevidade e exaltação corpórea. É da nascente do hatha-yoga que brotará os faquires chamadores de audiência, que a partir do século dezesseis atrairia a admiração do público geral, em ruas imundas e abarrotadas de desocupados. Porém, é deste meio confuso e caótico, que mistura exibição corpórea sobrenatural e retenção encantada da atenção de mentes subdesenvolvidas, que o ocidente importará a prática mecânica do yoga, como a mais alta cultura.

Nesse período, a técnica orgânica já fora perdida. Restando somente a mecânica que movimentaria as máquinas da revolução industrial, dando ao homem um novo status, onde ele preserva sua ilusória condição de deus, mas um deus falível e indefinível para a modernidade, como produto-homem-deus.

Embora possa parecer ficção científica, é a realidade que temos hoje diante de nossos sentidos. Quer dizer, uma perda da noção exata do que é realidade em meio à massiva ilusão.

A técnica se desdobraria até o ponto de suplantar a produção, criando uma nova condição na existência humana. A máquina, organizada dentro de técnicas precisas, passa, então, a preencher o ato humano, dando liberdade ao homem e elevando-o ao patamar de produto em que, numa lógica inversa, como numa granja industrial, o homem passa a ser alimentado continuamente por demandas artificiais, necessidades banais, expectativas improváveis e delírios virtuais numa rede de internet.

A técnica mecânica se transmuta no monstro tecnológico que abrange todo fazer, sentir e pensar humano, limitando a liberdade do homem às regras tecnocráticas de uma prisão, desde uma mera pesquisa no google até às formas de pagamento online.

Neste ponto, todas as correntes técnicas, seja das manifestações artísticas, seja das ciências argumentativas, seja das tradições do yoga, estão contaminadas pelo fazer mecânico virtualizado pelas tecnologias.

Por ironia, o termo latino virtual se refere à potência do que pode vir a existir e também à força corpórea – algo bem distinto que consumimos como virtualidade, onde simplesmente somos banidos do orgânico estado de existir e entramos no prazeroso berço do consumir, entreter e  menosprezar a atenção.

É neste meio complexo que a maior parte das pessoas fazem yoga, ou reproduzem a mecânica do yoga – aquilo que vemos mais do que experienciamos. 

Em vez de fazer, de reproduzir, deveríamos praticar (de práxis ou de practike) a experiência que extraímos no yoga. Ou seja, compor dentro de si, vivenciar dentro de si e a partir de si, a experiência viva e orgânica do yoga, abandonando a reprodução mecânica do que vemos, do que ouvimos, do que assistimos e absorvemos como se fosse yoga. Assim como existem mais caciques do que índios, no yoga, estes caciques procuram ser vociferantes papagaios que apenas repetem o que ouvem e creem, sem ao menos experienciar a natureza da alma integrada com sua divina consciência.

A reprodução do yoga, ou o yoga como produto, se refere ao fazer yoga externamente, sem imersão, sem autoconsciência, sem introspecção. É a reprodução do yoga num labirinto de espelhos, onde somente os egos se refletem e se cobiçam.

A prática orgânica segue as técnicas originas, como meio de lançar o praticante à experiência interior, desligando-se do produto yoga, das propagandas e demandas criadas para atrair novos consumidores (do yoga ou seria ioga, ou ainda ióga?). 

Ato e espírito estão juntos, organicamente (e ontologicamente). Ego e produto estão unidos mecanicamente (e fisicamente), através desta construção virtual na qual fomos lançados hoje e estamos imersos.

A questão da técnica trazida por Heidegger não está viva nos dias atuais; o que existe são apenas reproduções desse pensamento crítico, pois ele mesmo fora um reprodução técnica, cuja incapacidade metafísica o levou a considerar que a vida ou a realidade é mera linguagem. Tal equívoco cognitivo o levaria aos extremos da técnica política da Alemanha na 2ª guerra mundial – o resto já é conhecido pela história. 

Agora, para quem segue disciplinas práticas do yoga, tais questões estão ainda mais vivas, pois vivemos também num contexto onde as emoções se tornaram produto. Todos querem consumir uma técnica, um novo treinamento, uma nova experiência capaz de dar suporte aos conflitos emocionais através de reprogramações de linguagens, cuja origem de tais conflitos repousa justamente neste mecanicismo virtual, que permitimos entrar em nossas vidas, possibilitando o conforto e comodidade da tecnologia e dos aplicativos que “facilitam a vida”.

Entretanto, a lacuna que surge deste preenchimento artificial é a ignorância, capaz de criar todas as variadas formas de sofrimento humano na modernidade. Para a ignorância nem se exige técnicas. Basta ignorar que existem técnicas condicionantes moldando nossas capacidades originais.

Mais yoga, menos artificialidades.

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Ensaio é uma expressão livre de argumentos que revelem um olhar embasado, crítico e compassivo através da arte da escrita. Se algo tocou em sua semelhança, afirmo não ter sido pessoal, apenas coincidência.

Para não se sentir numa aldeia de ignorância, entre para a Escola de Yogis.